PIXINGUINHA E BENEDITO LACERDA
“Quando, por alguns momentos, recordo fases da minha vida, o nome de Pixinguinha, meu amigo de todos os instantes, vem logo ao meu pensamento, e lembro-me da maneira como vim a conhecê-lo. Foi assim: certo dia, numa de minhas audições, tive o primeiro contato com ele. Como era seu apreciador de longa data, fui-me aproximando e passamos a ser amigos. Com o passar do tempo, ele mais me apreciava e eu a ele. Nesse ínterim, aparece um amigo de nós dois, que teve a ideia de reunir-nos em uma dupla. Veio a mim e disse que Pixinguinha perguntara se aceitava a formação do duo. Afirmei que sim e, mais tarde, soube que ele fizera a mesma pergunta ao Pixinguinha. Como todos dois aceitassem a ideia, formamos a dupla Pixinguinha-Benedito Lacerda, a qual, modéstia à parte, conseguiu grandes sucessos.”
Este depoimento de Benedito Lacerda à Revista do Rádio em maio de 1948 traz a visão do flautista sobre o início de uma das mais importantes duplas instrumentais do Brasil. Pixinguinha e Benedito Lacerda cunharam um novo modelo de interpretação de choro na série histórica de gravações que fizeram pela RCA-Victor a partir de 1946. O fraseado e o “balanço” da interpretação de Benedito eram emoldurados por algo inédito para o ouvinte da época: os contracantos de Pixinguinha no sax tenor, em uma nova forma de improvisar que teria consequências surpreendentes para a história do samba e do choro.
A prática de improvisação de contracantos em instrumentos graves sobre as melodias executadas pelos solistas era comum aos chorões desde finais do século XIX – é possível mesmo encontrar algumas partituras escritas destes contracantos em arquivos de partituras antigas. O próprio Pixinguinha vivenciou parte desta tradição em seu primeiro grupo – Choro Carioca – ao tocar em duo com o oficleide de Irineu de Almeida. A audição deste instrumento nas gravações de época nos permite entender a sonoridade e o fraseado usados por Pixinguinha em seu saxofone tenor.
Mas se a tradição de contracanto já existia desde muito, a variedade e riqueza rítmico-melódicas estabelecidas por Pixinguinha nas gravações com Benedito levaram esta forma de se tocar a um novo patamar. Diferentemente dos contracantos bastante comedidos dos chorões do início do século, este moderno estilo de fraseado era muito mais livre, colorido e ritmicamente instigante em todos os aspectos – basta ouvir gravações como “Um a zero” e “André de Sapato Novo” para se confirmar esta afirmativa. A experiência de tocar ao lado de Pixinguinha no regional de Benedito Lacerda seria decisiva para que o jovem Horondino Silva (então tocando ainda violão de seis cordas no conjunto) desenvolvesse seu estilo de contracanto no violão de sete cordas, em uma escola de acompanhamento que seria fundamental para o choro e para o samba a partir de então.
Nos trinta e quatro registros gravados pela RCA-Victor a dupla apresenta um panorama da história do choro – regravando músicas dos pioneiros, tais como “Só para moer” de Viriato Figueira, “Língua de Preto” de Honorino Lopes, “Atraente” de Chiquinha Gonzaga e “Segura a mão (Roceira)” de Mário Álvares, mas o carro-chefe da dupla é mesmo a obra de Pixinguinha. Diversos choros hoje clássicos em rodas no Brasil e no mundo foram lançados nesta ocasião, tais como “Cheguei”, “Descendo a serra”, “Devagar e sempre”, “Marilene” e “Vou vivendo”. Todos eles traziam como autores Pixinguinha e Benedito Lacerda, embora saibamos que o primeiro era o único autor e o nome de Benedito era acrescentado por razões comerciais. Mas é interessante notar que o próprio Pixinguinha endossava esta co-autoria, já que em diversos manuscritos presentes em seu acervo é possível encontrar partituras com a indicação “Música de Pixinguinha e Benedito Lacerda” escrita com sua própria caligrafia. Enfim, uma amizade musical e pessoal, “de todos os instantes”, como afirma Benedito em seu depoimento.