OITO BATUTAS (1919-1923)
Primeiro grupo de música popular brasileira a alcançar projeção internacional, os Oito Batutas tiveram intensa vida artística no período de 1919 a 1931, suscitando por vezes inflamadas discussões na imprensa e nos meio intelectuais da época. Inicialmente formado para realizar apresentações na antessala do Cinema Palais, o sucesso do grupo foi tão grande que ultrapassou as fronteiras do país, chegando a fazer bastante sucesso na França e na Argentina.
Segundo Sérgio Cabral, em sua biografia sobre Pixinguinha, os Oito Batutas teriam surgido a partir do convite do empresário Isaac Frankel, gerente do Cinema Palais (um dos mais prestigiados da cidade). Frankel teria assistido a uma apresentação de 19 músicos, organizada por Donga e Pixinguinha, em um coreto do centro da cidade no carnaval de 1919. Empolgado com o que ouvira, teria chamado ambos para organizar uma pequena orquestra com oito elementos para apresentações regulares no cinema. Os depoimentos de Donga e Pixinguinha a respeito do convite são ligeiramente conflitantes:
Versão de Donga: “Isaac Frankel nos conhecia e nos chamou, a mim e a Pixinguinha, atrás do coreto. Pediu-nos para selecionar oito entre os 19 membros do grupo para formar um conjunto. Foi o que fizemos. A primeira audição foi realizada no Cinema América, na Praça Saens Peña, com a presença de vários empresários de cinema, inclusive o principal interessado. Após a audição, viemos discutindo quem seria isso, quem seria aquilo no conjunto, e foi uma surpresa quando Pixinguinha e China sugeriram que Juvenal Fontes fosse o cantor. Apesar de amigo, quase irmão de Juvenal, discordei logo. Eu e Raul Palmieri manifestamos logo o nosso voto: teria de ser o China. Eles concordaram”.
Versão de Pixinguinha: “Quando o bloco chegava no Cinema Palais, a gente parava e tocava. Seu Frankel, o gerente do cinema, vinha pra porta e ficava apreciando a gente. Era uma homenagem que a gente fazia a seu Frankel. O Palais era um cinema muito grande e muito elegante. Na sala de espera, tocaram músicos muito importantes como Cardoso de Menezes e Luciano Gallet. Até o grande Luciano Gallet tocou lá! Depois que nos viu no Bloco do Caxangá, seu Frankel me pediu para organizar um grupo para tocar na sala de espera do Palais. Criamos os Oito Batutas. Não é que agradamos?”.
A primeira formação do conjunto, conforme noticiado jornal O País de 15 de outubro de 1919, era a seguinte: Pixinguinha (flauta), Donga (violão), China (violão e voz), José Pernambuco (canto e ganzá), Jacob Palmieri (pandeiro), Raul Palmieri (violão), Nelson Alves (cavaquinho) e Luiz Silva (reco-reco).
O Cinema Palais, um dos mais elegantes da cidade nas primeiras décadas do século XX, estava situado na Avenida Rio Branco 145/149, na esquina com a Rua Sete de Setembro. Segundo Sérgio Cabral, o Cinema teve originalmente o nome de Pathé, sendo administrado pela Empresa Cinematográfica José Gustavo de Matos. Posteriormente, foi vendido à Agência Geral Cinematográfica e finalmente à Agência Geral Cinematográfica Claude Darlot. Teria durado até 1926, quando foi ocupado por uma loja de roupas.
Uma das primeiras notícias sobre o Cinema Palais, publicada em 28 de julho de 1914, já chamava a atenção para o “luxuoso e confortável cinema”, que, “pela sua magnífica colocação no melhor ponto da avenida [Rio Branco], dispondo de dois amplos salões de projeção, bate o record por esses predicados à todas as outras casas congêneres”.
Neste período era de praxe que as antessalas dos cinemas tivessem programação musical que atraísse o grande público. Músicos como Ernesto Nazareth, Luciano Gallet e outros se apresentavam em cinemas como Odeon, Avenida etc. Dessa forma, a contratação dos Oito Batutas pelo gerente do Palais, Isaac Frankel, era sem dúvida uma estratégia comercial, já que havia uma espécie de disputa entre os diferentes cinemas da cidade na contratação dos melhores grupos musicais.
Foi nesse ambiente luxuoso, ponto de encontro da elite da época, que, em 7 de abril de 1919, os Oito Batutas estrearam com grande sucesso (o jornal A Rua informou que “colossais enchentes” vinham tomando o Palais), mas já sob uma saraivada de críticas, motivadas pelo preconceito reinante: muitos consideravam “um escândalo” que aquele grupo, cujos integrantes usavam vestes sertanejas e tocavam música popular, além de contar com quatro negros em sua formação (Pixinguinha, China, Donga e Nelson Alves), se apresentasse no Palais, frequentado por gente da alta sociedade. Em defesa do conjunto manifestaram-se jornalistas como Xavier Pinheiro e Afonso Arinos. O público lotava as apresentações dos Batutas e gente de prestígio ia assisti-los no cinema, como Rui Barbosa, Ernesto Nazareth e Arnaldo Guinle. Eram pessoas que não estavam interessadas em ver os filmes, e sim em ouvir os chorinhos executados pelos jovens instrumentistas. Naquele mesmo ano, a Odeon lançou em disco a música Oito Batutas, de Pixinguinha, gravada pelo Grupo do Pechinguinha (seu apelido ainda recebia várias grafias diferentes nessa época). No final de 1919 e no início do seguinte, os Oito Batutas, patrocinados por Arnaldo Guinle (e com João Pernambuco no lugar de José Alves de Lima, que tornou-se secretário do grupo), viajaram para várias cidades de São Paulo e Minas Gerais, obtendo estrondoso sucesso em suas apresentações e somente retornando ao Rio em maio de 1920.
Em junho desse ano, estreou a opereta Flor Tapuia, de Alberto Deodato e Danton Vampré, no Teatro São Pedro (atual João Caetano). Entre as atrações do espetáculo estavam justamente os Oito Batutas, além dos grandes artistas Abigail Maia, Procópio Ferreira (pais de Bibi Ferreira), Vicente Celestino e Jaime Costa. Um fato inusitado acabou contribuindo para que Pixinguinha pudesse mostrar toda a sua genialidade, mesmo sendo tão moço (apenas 23 anos). O maestro português Luís Quesada, autor da música, após um desentendimento com os diretores, simplesmente desapareceu, levando consigo todas as partituras, o que causou a paralisação da peça. Num dia chuvoso, os batutas Donga e China encontraram Deodato e Vampré no Centro do Rio. Depois de um café na Praça Tiradentes, Donga teve a ideia de pedir o libreto aos autores, dizendo que ia levar para Pixinguinha. Deodato foi buscar o material na empresa e entregou-o a Donga e China, que seguiram para a casa de Pixinguinha. E este, embora ainda sem muita prática de orquestrador (mas com um enorme talento), escreveu uma partitura completamente nova, resolvendo o problema. No final do ano, os Batutas participaram de outra revista, Se a bomba arrebenta, desta vez no Teatro Recreio.
Os Batutas continuavam em ritmo de turnê, apresentando-se, entre 1920 e 1921, em Niterói, Curitiba, Salvador e Recife, além de várias audições no Rio de Janeiro. Em 3 de outubro de 1921, o grupo se apresentou na residência do presidente da República, Epitácio Pessoa, como atração na recepção oferecida ao general francês Charles Mangin, herói da Primeira Guerra Mundial. Um dos mais entusiasmados com a performance do conjunto no evento foi o general Cândido Rondon.
Em janeiro de 1922, por sugestão do bailarino Duque (Antônio Lopes de Amorim Diniz), e mais uma vez patrocinado por Arnaldo Guinle, o conjunto foi a Paris (pelo transatlântico Massília) para se apresentar no dancing Sheherazade. O baterista J. Tomás adoeceu às vésperas do embarque, que se deu em 19 de janeiro; por isso, em vez de oito, viajaram sete integrantes, o que resultou numa ligeira mudança no nome da trupe para Os Batutas (na França, Les Batutas ou L’Orchestre des Batutas). No Brasil, novamente os racistas da época (entre eles alguns intelectuais) se pronunciaram, escrevendo nos jornais contra a viagem. Para decepção destes, os músicos patrícios fizeram um estrondoso sucesso em Paris, apresentando-se em pelo menos três casas noturnas da cidade. Chegaram a tocar com músicos de quatro jazz-bands e a se apresentar para integrantes da família imperial brasileira, exilada em Paris desde a queda da monarquia no Brasil, em novembro de 1889. A temporada francesa terminou no dia 14 de agosto, quando os Batutas desembarcam do navio Lutetia no porto do Rio de Janeiro. Donga trazia na bagagem um violão-banjo, Nelson Alves um cavaquinho-banjo e Pixinguinha um saxofone, presente de Arnaldo Guinle.
Em setembro de 1922, por ocasião da Exposição do Centenário da Independência do Brasil, Pixinguinha e os Oito Batutas participaram da primeira transmissão de rádio feita no Brasil, um ano antes da inauguração da Rádio Sociedade, emissora pioneira criada por Roquette-Pinto. E, em 1º de dezembro, o grupo embarcou para uma temporada em Buenos Aires, já um tanto modificado: Pixinguinha (flauta e saxofone), Donga (violão e banjo), China (violão e voz), Nelson Alves (cavaquinho e cavaquinho-banjo), José Alves (bandolim e ganzá), J. Tomás (bateria), J. Ribas (piano) e Josué de Barros (violão). Os músicos brasileiros obtiveram na Argentina a mesma ovação recebida em Paris e gravaram, no início de 1923, 20 músicas (10 discos de 78 rpm) para a Victor local (que se tornariam os únicos registros fonográficos do grupo, apesar de terem feito tanto sucesso no Brasil e no exterior). Por razões até hoje desconhecidas, houve um racha no grupo: quatro de seus integrantes (Donga, Nelson Alves, J. Tomás e Julinho de Oliveira [Aristides Júlio de Oliveira]) voltaram para o Rio de Janeiro. Os outros quatro não conseguiram mais se apresentar, pois os empresários se recusavam a programar audições com metade do conjunto. Os artistas, sem dinheiro para pagar hotel, comida e passagem, viveram dias difíceis, só conseguindo retornar ao seu país de origem graças à intervenção do consulado brasileiro em Buenos Aires.
Do racha no grupo surgiu o conjunto Oito Cotubas, capitaneado por Donga. Mas, ainda em 1923, os antigos membros dissidentes se reintegraram ao grupo e foi criada a Bi-Orquestra Oito Batutas, sob a forma de jazz band, que tinha como intuito tocar músicas internacionais de sucesso sem abandonar as execuções de choro. Em 1925, os Batutas apresentaram-se em Santos ao lado do casal de dançarinos Duque e Gaby, do cômico De Chocolat (João Cândido Ferreira), da cançonetista francesa Blanche Margy e da jovem cantora e dançarina paraense Jandira Aymoré (pseudônimo de Albertina Nunes Pereira), por quem Pixinguinha acabaria se apaixonando. Ele e Albertina (cujo apelido era Betty) passaram a integrar, em 1926, a Companhia Negra de Revistas, criada por De Chocolat e pelo português Jaime Silva. Pixinguinha era o encarregado das orquestrações e da regência das músicas compostas por Sebastião Cirino. A primeira peça do grupo, Tudo preto, foi apresentada no Teatro Rialto entre junho e agosto. No mês seguinte, estreou Preto no branco (com música de Lyrio Panicalli), que teve curta duração. A companhia seguiu para São Paulo, onde incorporou ao elenco um menino de seis anos chamado Sebastião Prata, que adotou o nome de Grande Otelo.
Durante a temporada em São Paulo, no dia 5 de janeiro de 1927, Pixinguinha casou-se com Albertina, a Betty, num cartório do Brás. De volta ao Rio, a jovem abandonou a carreira artística e o pseudônimo Jandira Aymoré, passando a se chamar Albertina da Rocha Vianna. O casal foi então residir no subúrbio de Ramos. Neste ano tiveram início as atividades dos Oito Batutas no Cinema Odeon (onde acompanhavam dois casais de dançarinos norte-americanos). Em agosto, Pixinguinha e os Oito Batutas (com nova formação) estreavam uma turnê pelo Sul do Brasil no Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis. O ano de 1928 registra – a partir de maio – o início das atividades dos Oito Batutas como atração fixa no bar/restaurante Assírius, localizado no subsolo do Theatro Municipal, onde eles se apresentaram até 1931, quando o conjunto deu seu derradeiro suspiro. Em seu lugar, surgiu o Grupo da Guarda Velha, capitaneado por Pixinguinha, Donga e João da Bahiana.